Quando Chico Buarque e Gilberto Gil escreveram a música Cálice, o Brasil vivia um período conturbado em sua história contemporânea. A ditadura militar oprimia o livre pensamento e punia com rigor aqueles que não seguissem à risca o que era determinado pelo governo ditatorial imposto no Golpe de 1964.A imprensa, por meio dos jornais, tinha suas matérias monitoradas dentro das redações por um militar chamado “sensor”, que previamente decidia o que ser ou não publicado; obviamente assuntos que criticavam o regime eram imediatamente vetados. As editorias mais rebeldes publicavam receitas de bolo no espaço antes reservado para a matéria censurada. Dessa forma conseguiam transmitir sua insatisfação com sarcasmo, despertando no leitor senso crítico e ganhando aliados na luta contra a ditadura militar.
Entre os artistas não era diferente. Buarque e Gil representam dois exemplos dos inúmeros manifestos feitos por intelectuais da música contra a ditadura. Era comum que compositores de músicas constantemente vetadas pela censura fossem perseguidos e, em alguns casos, forçados ao exílio. Foi o que aconteceu a Gil e ao seu conterrâneo Caetano Veloso.
A edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) pelo governo militar, em dezembro de 1968, cerceou uma série de liberdades individuais. Caetano e Gil são presos em São Paulo, sob o pretexto de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. São encaminhados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro, onde têm suas cabeças raspadas. Numa Quarta-feira de Cinzas, em Fevereiro de 1969, Caetano e Gil são soltos e seguem para Salvador. Na capital baiana são obrigados a se manter confinados, proibidos de aparecer em público nem dar declarações ou entrevistas. Meses depois, em julho de 1969, após dois shows de despedida, no teatro Castro Alves, em Salvador, Caetano e Gil partem com suas mulheres, respectivamente as irmãs Sandra e Dedé Gadelha, para o exílio na Inglaterra.
A música Cálice foi escrita dentro dessa atmosfera de perseguição à liberdade de expressão, só restando aos compositores da época encontrar maneiras de passar suas mensagens nas entrelinhas, sem despertar o interesse das autoridades militares. A ambigüidade da palavra “cálice” refere-se ao calar-se imposto pelo regime, mas também da “bebida amarga” dentro desse cálice, que era digerida sem reclamações. Quando os autores se referem a “abrir a porta”, se manifestam contra a truculência dos militares, que costumavam invadir apartamentos em busca dos “aparelhos” - grupos de estudantes que se articulavam com finalidade de combater o governo militar – a letra ainda diz: “quero cheirar fumaça de óleo diesel”, este trecho faz alusão às torturas comuns à época, que consistia em ligar um veiculo numa garagem fechada e deixar o preso deitado junto ao escapamento a sufocar-se com o monóxido de carbono até que confessasse supostos crimes.
A ditadura foi uma época onde o direito à livre expressão era vedado sem a possibilidade de questionamento e fez inúmeras vítimas. Muitos que ousaram falar não foram encontrados até os dias atuais pela família.
Talvez Buarque, Gil, Caetano e tantos outros não estivessem entre nós hoje se não fosse suas capacidades de driblar através da música os cães dos generais dentro das redações e gravadoras. As letras inteligentes e cheias de significados, só podiam ser codificadas por aqueles que detinham mentes libertárias, deficiência genética dos marajás fardados.









